terça-feira, 24 de março de 2009

Mania de Maria-só-zinha

Imagem: Eu e minha boneca


Eu ainda brinco de boneca
e a minha boneca chama-se Maria.
Durante o dia, dentro de um armário,
eu guardo, com cuidado, a minha bonequinha.
Depois cuido para que ninguém perturbe
nem que alguém machuque
a minha doce Maria-só-zinha.

Porque a Maria é feita de delicados panos
cada qual com metros de bordados
e coloridos mantos.
Porque a Maria é curiosa, é formosa,
mas ainda é muito pequena.
Por isso, pode desmanchar suas tranças
e perder-se nas rendas;
Ou nas areias turvas e claras e sardentas.


Mais eu ainda brinco de boneca
Só para pentear alvos e enormes cabelos.
Fazer-lhe roupas, inventar-lhe nomes,
namorados e segredos.
Depois desmanchar tudo; sem, contudo,
destruir-lhe os sonhos, parafraseados e adereços.


Porque eu ainda brinco de boneca
e construo casas bem “azulzinhas”
para que a minha Maria-só-zinha não se sinta sozinha
e possa fazer gostosuras em sua farta cozinha.


Isso tudo porque eu brinco de boneca
e a minha boneca chama-se Maria.
É Maria que pinta em tonta-tinta as minhas curvas-linhas.
É Maria que liga ponto a ponto a ponte da minha varinha.


Porque ainda sou criança e meu natural é imaginar
Porque criança que é criança,
brinca mesmo sem saber jogar.
Porque criança não se preocupa por que sonha,
nem o porquê do sonhar.
Simplesmente sonha porque nasceu para amar.


É por isso que eu digo:
― Eu ainda brinco de boneca
É essa a minha mania!



*Do livro Agá-Efe: entre ruínas & quimeras (FERNANDES, Hercília, 2006, p. 95-96).

16 comentários:

Graça Pires disse...

Um belíssimo poema, Hercília. O regresso à infância é tantas vezes a fuga às solidões que a vida nos impõe. É o lugar onde nos escondemos das nossas fragilidades.
Um beijo.

Beatriz disse...

Gracioso poema sobre o brincar e a criatividade. Texto sobre a possibilidade de fazer a linguagem virar brinquedo sério. Todas nós temos nossas Marias. A minha sempre foi Emília de Monteiro Lobato.

Unknown disse...

Maravilhoso Hercília.
Um poema lúdico que aponta para o lado feminino, que por ser mãe, empresária e atualmente ter outra posição dentro da sociedade, não deixa de ser "Fêmina".

Parbéns!

Belíssimo!!!

Um forte abraço

Mirse

Helena disse...

Lindo poema serve de contraponto delicado e sutil a nossas anteriores pedradas. O lúdico, o feminino, o encanto guardado - muito bonito e bem escrito - a poesia tem várias faces e todas nos atingem em algum ponto especial

abração,

helena

L. Rafael Nolli disse...

Muito bonito o poema, Hercília. Tem uma leveza que nos conduz de uma forma tão sutil, como se fosse uma cantiga na voz doce de uma criança - tem um ritmo e um embalo que o deixa mais especial ainda se lido em voz alta. Muito bom.

Hercília Fernandes disse...

*Graça Pires, querida amiga.

Muito obrigada por sua vinda e belas palavras. Sim... em nossos devaneios acabamos nos reportando para as imagens da infância. E isso é fantástico.

*Compulsão,

muita agradecida pela sua leitura e generoso comentário. Você retirou boa parte das vestes de minha bonequinha. Muito obrigada!

*Mirze, minha amiga.

Sim... nós mulheres [e/ou poetas] assumimos múltiplas faces, mais ou menos como a lua... e, dentro de nós habita uma alma infantil.

*Helena,

fico feliz que tenha apreciado e agradeço-lhe a delicadeza e fartura de seu comentário. Quis trazer algo leve, sereno, ritmado... mas, ao mesmo tempo, sugestionar ângulos do fenômeno criador; que, para mim, consiste um momento de inteira felicidade, de ludismo.

*Rafael,

muito legal dividir cena com você. Aprecio muito a sua poesia e a Lira que nos traz hoje é fabulosa-mente catártica.


Abraços em Todos e Todas do Poema Dia,

H.F.

Fred Matos disse...

Delicia de poema, Hercília.
Beijos

Hercília Fernandes disse...

Obrigada, Fred.

Fico feliz que tenha apreciado a minha doce Maria-só-zinha.

Beijos, querido!

H.F.

Maria Clara disse...

H.F.

Lindo o seu poema “Mania de Maria-só-zinha”. Uma delicadeza e raio de sol nos descaminhos, nas curvas-linhas da poesia. Parabéns!

Vou tomar esse poema para mim, viu? Pois, me sinto inteiramente homenageada, pois, além de ser “Maria”, minha alma também é de criança: sonhadora.

Aproveito a vinda para parabenizar a todos os “poetas” do “Poema Dia”. Estou encantada com o espaço e pouco a pouco irei visitando os autores.

Abraços, querida poetisa!

Maria Clara.

Anônimo disse...

Que coisinha mais linda, Hercília. Por um instante, eu me vi com a minha Maria-só-zinha, que resiste à maturidade e suas intempéries e mantém a minha alma de menina. Amei!

Hercília Fernandes disse...

*Maria Clara,

muito me contenta a sua visita. Realmente, o Poema Dia é fantástico. Estou muito feliz em integrar o projeto. Sim... o poema também pertence ao leitor, sinta-o seu.

*Vera,

que bom que apreciou o poema da Maria-só-zinha. A minha “menininha” lhe agradece com muito carinho.

Forte abraço, meninas!

H.F.

Adriana Godoy disse...

Um belo jogo lúdico de palavras e ideias.Uma maneira doce de brincar com a vida. Bonito, Hercília.

Hercília Fernandes disse...

Oi Dri,

E, não é a vida um grande carrossel?...

Muito grata, minha querida, pela leitura atenta e farto comentário, a minha bonequinha [de pano e nordestina] ficou toda faceira.

Abraços,
H.F.

cisc o z appa disse...

tem mar
nesse sonhar
de ondas e fantasias
dias e manias

nada como a feliz idade
de brincar
e para isso não há idade
há tanta felicidade

lindo hercília!

Cris Animal disse...

Que lindo...emociona! Assim como emociona à nós adultos uma boneca de pano.
Tomara que tenhamos gaurdado, todos nós, dentro do coração uma boneca de pano. seremos mais felizes e menos exatos quando abrirmos o armário do coração e poder novamente viver essa poesia doce e terna.

beijo
...............Cris Animal

Hercília Fernandes disse...

*Oi, Fernando.


Sim... não há idade para a fantasia e ludicidade. Sonhar é da natureza do homo ludens. Muito obrigada por vir fazer sorrir essa menininha de bordados e sonhos-de-renda.


*Cris,

essa bonequinha dorme e acorda em nós. Para despertá-la basta abrir os braços para a imaginação. Fico feliz que tenha gostado da minha Maria-só-zinha.

Muito obrigada, amigos, pelas leituras e apreciações.

Abraços,

H.F.