quarta-feira, 24 de junho de 2009

À meia noite


Para acompanhar leitura: Back To Black

(Amy Winehouse)




Era tarde, muito tarde para retroceder. Ela sabia!... Nada do que lhe dissesse naquele momento far-lhe-ia algum sentido...


Consternada com a sua súbita reação, ela ringe os dentes e lhe interpõe uma fala silenciosa, cujos significados são postos ao acaso e grudam nas paredes como estampas envelhecidas em um retrato natural.


No móvel, imóvel, as imagens distorcidas de uma cena de natal: árvores pitorescas, sinônimos à mesa. Objetos e retalhos de uma vida real. Mas era tarde, realmente muito tarde. O relógio preso à sala de estar, antigo préstimo de família, anunciava-se pau sa da mente à meia-noite.


Talvez se não fosse pela insistência daquela humilde e pretensa sonoridade, podia-se dizer que a sala impregnava-se de a companhia nefasta de um agouro congruente ao cingir de seus dentes.


Eram os sons do silêncio, os sons das madrugadas mal-dormidas, das luzes intransigentes, das letras repartidas. Eram os sons dos vultos saltando os muros, dos saqueadores de tesouros escondidos no interior dos túmulos. Eram os sons dos vermes que vagam na noite com o tridente de Netuno.


Mas ela nada pôde fazer.


Não havia como enunciar simples palavra de conforto, posto que a vela apagara-se há meia-noite, junto ao silenciar dos seus badalos e dos seus açoites.


Ela nada pôde dizer.


O candelabro ainda enfeita o centro, porém a chama na vela o vento soprara rompendo, sem mesmo a companhia de algum mimo ou acalento.


Ela nada pôde dizer. Ela nada pôde entrever.


Acompanhava-lhe o espírito apenas o denso e grotesco rugido dos dentes estampido no ar; perdido no cais, no vácuo, no mar...


– Rsss... Ela nada pôde fazer!





* Mini-conto extraído do livro: ruínas & quimeras (FERNANDES, Hercília: 2006, p. 75-76). Publicado no site Garganta da Serpente, na categoria Contos de Coral.

** Texto “revisitado” pela autora em 24 de junho de 2009.

*** Imagem disponível no site Word Art Friends.


8 comentários:

Unknown disse...

Lindo Hercília!

Conseguiste me comover e me levar às lágrimas.

Talvez pelas soturnas madrugadas, mas com certeza porque é um canto com sons e luzes.

Me identifiquei!

Parabéns, prende poeta!

Beijos

Mirse

Adriana Godoy disse...

Hercília, um texto muito bonito e denso. Gostei muito. Beijo.

L. Rafael Nolli disse...

Gostei, muito bem construído!

Hercília Fernandes disse...

Mirse,
Adriana Godoy,
Rafael

muito obrigada pela leitura e comments.

Desculpe ainda não ter vindo agradecer, estive muito ocupada nesta semana.

Forte abraço em vocês e em todos os que fazem o Poema Dia.

Beijos :)
H.F.

KA disse...

Hercilia,

Gostei do texto, excelente. Tem qualidade, seu livro deve ser muito bacana.
Grande abraço!
Parabéns!

Maria Cintia Thome Teixeira Pinto disse...

Texto introspecção, de todos , não se pode fazer...Belissimo, pois espiritos estão aí...ab

Hercília Fernandes disse...

Ka, meu amigo.

Muito obrigada por sua vinda ao Poema Dia. Fazem-me feliz as suas palavras!

Beijos :)
H.F.

Hercília Fernandes disse...

Muito grata, Olhos de folha minha, por sua leitura e generoso comentário.

Beijos :)
H.F.