segunda-feira, 13 de abril de 2009

Um longo poema

Peço perdão, antecipadamente, pelo longo poema. Por ter sido premiado uma vez em um ótimo concurso, cogitei que talvez fosse razoável trazê-lo para este espaço (uma vez que está publicado no poemas lançados fora, 2007). Espero, ao fim, não ter precisado de perdão. Muita arte a todos nesta semana!

Da casa dos desprovidos

a casa dos desprovidos
morada das almas tortas
tem milhares de janelas
pro povo passar por dentro
que é a única via de entrar

nela se alguém se aventura
nos três cômodos distintos
praticamente indistintos
nunca se perde ou se acha
o sempre que está perdido
mas pros que olham de fora
nos furos que a casa deixa
cobertos de ralhas do mundo
vêem um quarto pequeno
má formação de arquiteto
banheiro e sala de estar

em parte de lisas paredes
úteis por previsíveis
visíveis pregos à vista
dispostos a suportar
os quadros que se transtornam
em outra são névoas maciças
devoram tempo e espaço
e volvem no grande embaraço
magro de realidade
o que realmente tolera
a vida a continuar

no caso o avesso do estranho
nunca se sabe ao certo
quem deste vasto e tamanho
pode-se ali encontrar
por ser tão contínua e tão vaza
tão salpicada de arranhos
posso afirmar ser de frestas
o seu assoalho brilhante
de onde sempre sofrida
passa despercebida
a sanidade do lugar

aprendem da cavalaria
na garupa do Quixote
das milhas submarinas
com o próprio capitão
às vezes Elis Regina
vem pra a gente namorar
às vezes não
às vezes Rimbaud se apruma
e traz armas de delícias
revela-se testemunha
de um universo que manca
enganado na carícia
da morte de um belo casal
ou na insônia de outro
outra história
noutras o bruxo do largo
vem apontar as malícias
do coração

por isso que a casa demora

na casa dos desprovidos
não há de se haver preguiça
nem correria nem nada
na busca do móvel exato
que não destoe nem pese
nem normalize a coitada
pra parte ordinária morar

pra ter poltrona na casa
tem que gostar de sextilhas
de redondilhas de oitavas
até do verso quebrado
que faz o leitor apressado
ter de prestar atenção
tem que gostar das cestinhas
do pão de queijo mineiro
do grosso café paulista
da feijoada de porco
que o rio insiste em trazer
das gorduchas de Belém
é tudo o mais fino manjar

tem que sorrir-se na sombra
da mangueira que não há
ir para lá e pra cá
no balanço sem corrente
perder horas de carinho
para obter aconchego
do cachorro que não vem
abrir o livro do estio
e vê-lo pingado nas folhas
no jardim que ninguém vê
mas todos juram que há

por isso que a casa destoa

a casa dos desprovidos
segue em avante tropeço
pra não desornar um só paço
que plácido anacoluto
o vão descoberto do verso
é aquele deixado de lado
numa conversa de roda
cedendo a palavra em silêncio
a outro que não quer falar
há os que a digam miragem
outros borrão da discórdia
disso uma imagem turva
que de entender suas retas
adivinham acanhada
as quinas do casarão
de sublime patamar

mas quem não é convidado
se ainda quiser espiar
há de saber que o vislumbre
é quase irrecuperável
basta buscar de soslaio
no devaneio da aurora
que urge no frio insistente
que finge que o dia não vem
também é possível tentar
naquela espécie de transe
que os homens engarrafados
se obrigam continuamente
na esteira do trabalho
mas nada dá garantias
que ser é poder encontrar

desbasta ter-se sensível
ancião ou meninote
mulher de saia comprida
senhora de longo decote
homem de terno grená
com muitos pêlos nas costas
das mãos
ser pelos outros mais sábio
por si mesmo mais sagaz
trazer a madame de rodas
que já se enferrujam demais
um verso de Manoel
na bandeira da razão
não pode valer-se da morte
que vem certo que vem cedo
rarefeita
enquanto tudo se atrasa
ela não pode

por isso que a casa se enfeita

na casa dos desprovidos
onde nunca há Providência
o pouco que se precisa
excede o que só desejam
pelo finório do olhar
que não se esconde
de tudo advém tristeza
mesmo quando se ama
ou se jura confortável
cansaço é licença do ser
mais no que lhe faltar

enfim aos mais fatigados
do fato de semi haver
permite-se que continuem
onde estavam
muitas vezes deitados
por ser condição natural
de lá se largam no peso
espantoso do impalpável
e os outros vêem nos lapsos
entre o chão e o abaixo
passarem braços pedaços
de rumo certo ao mistério
que só no enlace final
o homem é capaz de tocar
sentir seu entravamento
sentir-se caixão apertado
de pele

por tanto que a casa é momento

8 comentários:

Renata de Aragão Lopes disse...

Poema longo,
mas que é li(n)do num piscar!

Fico com os trechos:

"tem que sorrir-se na sombra
da mangueira que não há"

"no jardim que ninguém vê
mas todos juram que há"

Guto Leite disse...

Obrigado, Renata, pela confiança de leitura que um poema longo exige! =) Pode ficar mesmo com os versos, são teus... grande abraço

Beatriz disse...

Tanto avesso do estranho fez a casa momento de ler e reler o grande poema longo.

Adriana Godoy disse...

Um longo poema, contudo, boa leitura. Parabéns.

Tenório disse...

Faz tanto tempo que não leio um poema longo, que arrumo todo tempo do mundo para ler este.

Maíra Colombrini disse...

De tão envolvente nem parece que o poema é longo.

Barone disse...

Gostei Guto. Fico admirado com poemas longos, não consigo ter esta continuidade.

Joe_Brazuca disse...

na tora ou torá, heim, Poeta ?

eis a poética !

bom !

abraço