domingo, 5 de abril de 2009

A destreza das dúvidas

...A destreza das dúvidas bole o esterco e confunde o instante...

"Esta manhã, antes do alvorecer, subi numa colina para admirar o céu povoado, e disse à minha alma: quando abarcarmos esses mundos e o conhecimento e o prazer que encerram, estaremos finalmente fartos e satisfeitos? E minha alma disse: não, uma vez alcançados esses mundos prosseguiremos no caminho."
Walt Whitman

1.
Um torpe passadiço
seduz o approach-rastro do olhar
asfaltado de pedras.
Subordinada a bafos tórridos
a língua da libélula enervou-se em círculo
— o ato dela assassinar o macho brincalhão
não a salva do avesso em pranto —
e não raro sofre metástases gramaticais
derivadas das falas
voluptuosas de seios humanos estuprados...

2.
Alumiados pelo enxágüe do outono
os poetas-crus laqueiam a boca
e consternam os corpos adornados
por plumas metamorfoseadas
em breve moagem...
Ai!... No alpendre
a sanguessuga coincide
com a ejaculação de um insalubre embriague,
desmaterializa-se!
Desconectado de mim
logro o belo das carrancas e germino
o sensabor do seixo;
mas, antes cato feias begônias
e bebo café
com dissabor.

3.
Cá. A bagana ainda presa ao dedo anelar
espanta a ladra fuligem
daí esfola o sorriso até não suportar
— regurgita o não-orgasmo.
De mim: um imundo sêmen
escorre á força;
sobressaltado,
lampeja no influxo da aurora.

4.
Oh, Verbo!
O que na tua face pulula
(leve como uma pena)
enodoa a imensa cuba da fala.
O teu passado regula os limites da brisa,
não tenha medo, sumiu-se já o relâmpago…
E ainda que entreaberto como uma prostituta
não caçoe da lonjura de vagalhões...
Lembra-te de que és arpão...
Oh, sim,
recorda-te sempre dos excrementos amarelados
que fervilham como as unhas tesas:
— eles não escorregarão sobre ti
redivivos!

5.
Às sextas,
reviro o sexo alucinado da chuva.
Os féretros onde elas sangram fá-lo-ão suicidar
o som do mormaço
e alimentar-me-ão do que grela da ilusão
porquanto sabem elas que eu não morrerei
como sândalo.
Oh, semente!
Por que reinventar o tear
se elas nunca haverão de costurar inumanidades?
Por que engolir o cerne da vida
se o réquiem do veneno de após-sexta
é mais do que necessário?

6.
Colho um livro.
A destreza das dúvidas
bole o esterco e confunde o instante.
A abobada celeste,
sem o alfabeto das faces gretadas,
não ensina
alguns enigmas que o UFO esconde.
Como o poema soletra liberdade
e carpe insinuantes crueldades
louvo a redobra de desertos.
— Oh, aurora!
Peço-lhe que esqueça
o descaminho da faca.

© Benny Franklin

Fotografia: "Oleg Duryagin", astro russo da fotografia mundial que gentilmente autorizou-me a usar as suas instigantes fotografias nas postagens dos meus poemas.

25 comentários:

Adriana Godoy disse...

Um poema tão complexo como as dúvidas que se instalam. Palavras soam belas, há um ritmo e uma riqueza de imagens. Vou ler de novo para apreendê-lo melhor.

Renata de Aragão Lopes disse...

Benny,

sua postagem anterior aqui no blog encetou uma longa discussão sobre a acessibilidade do leitor ao conteúdo de sua obra.

Noto que, por mais uma vez, você traz um texto muitíssimo bem redigido, mas de difícil compreensão.

Minha indagação é, antes de tudo, por mera curiosidade: você não tem o receio de, aos olhos dos leitores em geral, restar sempre incompreendido?

Sidnei Olivio disse...

Poema para poucos, meu caro. Porém um poema riquíssimo e surpreendente. A cada nova leitura, nova viagem introspectiva, cheia de nuances, cheia de imagens... Gostei muito.

Benny Franklin disse...

Salve, Renata!

Que bom que você leu!

Uma vez um poeta me disse isso:

"Ás vezes penso que escrever é uma forma de nos purificarmos.
Sofremos uma catarse na feitura do poema, vivemos uma vida inteira pra que finalmente uma gôta condensada de tudo caia como versos, síntese do que somos. Ao olhar para aquele filho dizemos, serás amado, protegido e respeitado, e no entanto, mesmo entre nossos pares há os que irão ler sem ter olhos, irão ler com olhos de cobiça, com juras de amor e escárnio sem nunca ter entendido que o poema é antes de tudo sina: de quem escreve e de quem recebe um presente divino.

Essa mesma indagação o fiz a um outro poeta. Ele, sorridnte, disparou:

"Poema não é para ser compreendido,
e sim sentido!"

Deixe que a suprema essência dos dizeres invada a consciência!

E: obrigado pela leitura!

Com carinho,

Benny Franklin

Beatriz disse...

Verbo arpão! Esse é o melhor do poema. Dos poemas? Postagem rica. Gostei da citação do WW e parabéns pela licença do fotógrafo que é genial. Vc merece!

Renata de Aragão Lopes disse...

Obrigada pelo retorno!

Guto Leite disse...

Tua força verbal é impressionante, Benny, mas acho, claro, que num país de não leitores, rola uma pequena sinuca. Contudo (a adversativa da adversativa), o Arrigucci me disse certa vez que o trabalho do poeta é escrever, que para o bem e para o mal só a história é capaz de lê-lo (sem aspas pela memória fraca). Se assim você concebe o poema, assim deve ser, acho. Para o bem e para o mal. Teu, dos leitores, de todos! Realço que gostei bastante do poema! Grande abraço

Assis de Mello disse...

Outro ótimo poema, compadre Benny !!!

Joe_Brazuca disse...


Uma viagem inter(UFO)corpórea-estelar, tudo junto e misturado!
entendi e sinti , o mais importante...
abraço,Poeta Maior !

António Gallobar - Ensaios Poéticos disse...

A fotografia é realmente sublime, mas o poema e pontos de vista, são fantasticos, gostei muito

Parabens ou voltar

Antonio Gallobar

Tião Martins disse...

Tô sentindo falta do dentista... rsrsrsrsrsr!

Não acho o Benny difícil. É plástico. É ler e gostar ou não. Ser ou não ser entendido faz parte do nosso ofício.

l. rafael nolli disse...

Com certeza um belo poema - é para sentir mesmo, ainda que vários sentidos e significados saltam e se organizam no decorrer da leitura. Interessante e rico.

Rui disse...

Eu não sou o tal dentista, mas acompanhei a discussão do mês passado. Concordo com ele. Você, Benny, parece que escreve com o dicionário ao lado. Desculpa, mas garanto que quase ninguém entende o seu texto. De repente, até os que te elogiam.

Tenório disse...

Eu não acho que o Benny escreva com dicionário ao lado não, mas com isso não estou discordando totalmente do Ruy ou da Renata. O Antonio Cícero diz que o poema exige da gente o que temos de mais forte. Eu acho que o Benny faz poema assim, sem poupar energia. Mas não posso mentir que, para lê-lo, me sinto numa tarefa árdua, quase como ler matemática (que sou péssimo); saio dos seus poemas esgotado, com a blusa encharcada, não querendo mais voltar a esse mar.

Mas isso pode ser também o meu tamanho de garoto, que ainda não está preparado para entrar em mares tão grandiosos e violentos.

Renata de Aragão Lopes disse...

Ótimo comentário, Tenório!

Benny Franklin disse...

Muito obrigado a todos pela leitura a esse quase-dicionário em forma de poema.

Confesso: eu não espero ser uma unanimidade em cacho... Escrevo para fugir da inalterabilidade das coisas com a certeza de que todo poema é uma forma de resistir. Um fuzil Kalashnikov pronto para agir...

Defendam-se, senhores! Rs.

Beatriz disse...

Benny, semnpre senti teus poemas.
eles me afetam sempre. A qualidade é inestimável. Ler vc é ter coragem pra se soltar na batida do beat. Bits teus e nossos porque vc nos brinda com a sua verve.

Vc não é unanimidade. Nem poderia, porque ela é burra

Marcos Pontes disse...

Quando li Vidas Secas pela primeira vez, não entendi; quando li Sagarana, só entendi depois da segunda leitura e, depois de conhecer Minas Gerais percebi que não havia compreendido, precisei de mais tempo; muitas ótimas obras, tanto prosas como poesias, passam pelos campos da incompreensão da primeira vez que são lidas. Poema Sujo, do Ferreira Gullar, foi outra obra que precisou de mais de uma leitura para que eu o entendesse ou, pelo menos, achasse que entendi.
Longe de querer comparar Benny com qualquer um desses autores, apenas com a intenção de dar ao autor o apoio dos incompreendidos.
Já disse Quintana, "quando o autor tiver que explicar a obra, um dos dois está errado: o autor ou o leitor" (não exatamente com essas palavras). No caso do Benny, a meu ver, ele não está errado. Admiro seu jeito beat de escrever, suas imagens contudentes e a riqueza do vocabulário. Poesia não é crônica, conto ou romance, não precisa ser explícita em suas intenções. O subtexto pertence ao leitor. Não compreende a poesia quem foi incapaz de criar seu próprio subtexto.

Marcos disse...

Marcos, dizer que não entende a poesia quem foi incapaz de criar seu próprio subtexto é um pouco forte. Como vc mesmo citou um pouco acima, o erro pode estar com o Benny, coisa que vcs poetas nunca admitem. Me diga, um poeta que admita que a falha seja o seu poema manco. Aliás, o poema manco nem é visto como manco. Vira estilo, vira característica e próposito: fazer um poema manco. Como se vcs não tivessem brecha pro erro! Assim fica difícil qualquer argumento contra vcs. Como crianças mimadas que sempre têm como rebater, e a gente ainda sai sempre sempre de burros e limitados na estória.

Marcos Pontes disse...

Marcos, vou te confessar uma coisa aqui, baixinho: a maioria dos meus poemas é manca. De verdade, eu acho isso. Eles têm sido muito elogiados nas poucas vezes em que tive coragem de mostrar nas últimas duas décadas e meia. Somente nos três últimos anos os divulguei on-line e os elogios têm sido mais comuns que as críticas, mas ainda os acho mancos. pronto, admiti.
Você tem razão, eu disse que o erro, se há erro, pode ser do Benny. O Quintana também o disse. Mas também pode ser a incapacidade do leitor em criar seu subtexto. liás, incapacidade de se fazer determinada coisa não é sinônimo de burrice. Eu soi incapaz de escrever um hai-cai, seja lá o que isso for, mas nem por isso sou burro.
Bom, sou uma criança mimada contra quem não adianta argumentar, e você um adulto convicto que sua única argumentação é correta, incontestável e absoluta. Pronto, empatamos.
Quando você, pela primeira vez, arrumou uma tremenda quizumba nos comentários deste blog, eu me pus a seu favor e contra a mentalidade maniqueísta de alguns que te bombardearam, agora vem você, com um único argumento achando que destruiu toda a minha argumentação. Ok. Farei a vontade sua e dos demais que discordam de mim: O CULPADO É O BENNY E SOU SEU CÚMPLICE!

Marcos disse...

Olha, pra mim esse texto nada mais é que algo bem escrito, com tiradas, 'mote de resposta', incluindo a frase garrafal final.

NA MINHA OPINIÃO, que pode não ser a correta (mas leia por favor todos os comentários acima), os poetas saem, quando muito, de incompreendidos. Quer dizer, o que vc disse é bonito, mas na prática não é assim! Até o erro na poesia, é acerto.

Mas se é pra fingir que acredito no seu texto, fingir que ele não foi apenas um modo de ser afiado e irônico, se é pra fingir que acredito, então eu começaria essa resposta assim:

Ok. Ainda bem que vc admite.

Cintia Thome disse...

Amo-te

Felipe Vasconcelos disse...

Caro Marcos,

Hoje descobri essa polêmica em torno do seu comentário aos poemas recentes do Benny e gostaria de participar. Vou pegar do seu primeiro comentário e colocar umas coisas que eu acho. Num curso que eu assisti recentemente, o Ferreira Gullar (poeta que eu admiro muito) disse que nota uma tendência nos poetas de agora ao hermetismo. Apesar de circunscrito pelo campo limitado das minhas leituras, inclino-me a concordar com ele. Talvez esteja aí o cerne do seu incômodo.

No entanto, como várias pessoas apontaram aqui, nem todo poema é construído para ser compreendido de forma lógica. Poemas surrealistas, por exemplo, usam da técnica da escrita automática no intuito de colocar o subconsciente a serviço da criação poética. Tentar entender um poema surrealista, mesmo dentro de uma suposta lógica interna, é um equívoco.

É possível que um poema ruim se mascare dentro do hermetismo? Sim, é possível. É possível que um leitor despreparado, sem bagagem, experiência de vida, referência, gosto e inteligência não alcance a complexidade de determinado poema? Sim, também é possível. Eu acredito que uma verdadeira obra de arte dê proporcionalmente ao que se pede, ou seja, existem níveis de leitura, de interpretação. Resta ao leitor do poema, usando todas as faculdades que lhe são disponíveis (sua sensibilidade, sua cultura, sua história de vida, etc.), construir seu juízo de valor, e nesse momento ele encontra-se por sua conta: não existe regra para se aquilatar um poema. Na melhor das hipóteses, com o passar do tempo, ele pode vir a fazer parte da tradição poética, e é nesse sentido que o Guto Leite cita Arrigucci com muita propriedade.

Você pergunta "por que tudo que é encorpado e truncado recebe, de cara, o status de bom poema". Creio que aqui você faz uma generalização muito grande. Você crê realmente que seja assim? De Homero até Drummond? De Safo até Szymborska, passando por Dante, Goethe, Shakespeare e etc.?

Você também afirma "que letras de música são tidas como menores pelos poetas de cátedra". Você poderia citar uma fonte? Porque muitos poetas que eu admiro, como Vinicius, Antonio Cicero, Arnaldo Antunes, Waly Salomão, etc., contribuem à beça com letras de música, sem falar dos poetas que tiveram seus poemas musicados, como Drummond e o Bandeira. Além do que, se alguns poetas de cátedra pensam assim, isso não reflete a maneira com que todos os poetas pensam. Acredito mesmo que essa seja uma noção já ultrapassada.

Corrija-me se estiver enganado mas, pelo que entendi, subjaz no seu comentário a noção de que só os poetas herméticos ou por demais complexos são apreciados, e acredito que essa noção seja completamente equivocada. Todos os poetas que citei e muitos mais são, apesar de complexos, acessíveis.

Gostei muito do seu primeiro comentário. Também escrevo poemas e apreciaria muito se você desse uma olhada nos meus. Apreciaria ainda mais se você pudesse me dizer quais deles lhe são herméticos ou distantes e discuti-los. Eu poderia expor o que almejava ao criá-los e você me apontaria o que está em expressão ou não. Eu ficaria muito contente com essa troca. O que você acha? Eis o link:
http://felipevasconcelos.wordpress.com

Abração!

Assis de Mello disse...

Benny,

Depois de toda essa discussão, venho dizer que achei o poema excelente. Não o achei demasiado hermético, mas instigante e vivo. Há poemas (e poetas) herméticos interessantíssimos (e.g., Celan, Kaváfis, Michel Deguy... e muitos outros) de modo que essa divisão entre linguagem trivial/hermética nem deve ser tema para assunto sério, sobretudo em se tratando de poesia. Mesmo porque há poetas nada herméticos, às vezes até pueris- no bom sentido do termo- que também são excelentes (e.g., Quintana, Bandeira, Prévert, Bukowski).

No que diz respeito ao vocabulário, nosso idioma é riquíssimo, mas pouco explorado, até por pessoas bem letradas. Não vejo desmérito algum em se recorrer a dicionários. Aliás, admiro muito quem o faz pois, resgatar termos pouco usados é trazer cultura à tona. Acho nobre expor à luz a riquesa de nossa língua. Dicionários foram feitos para serem usados e procuro usá-los com muito orgulho.

Você postou um excelente poema. Mas o conjunto dos seus poemas também é de uma excelência de se tirar o chapéu.

Chico.

Benny Franklin disse...

Lembrei de Nietzsche:

"Compreendo muito bem as qualidades que devo ter para que alguém me compreenda, aquelas que necessariamente o forçam a compreender-me".

A todos daqui:
Obrigado pelos ditos!