segunda-feira, 24 de outubro de 2011

Evocação inútil

Foto: John Sexton


Ó menino que fui
dono de uma infância sabor novalgina
sofrendo delírios por doses excessivas
de xarope para o pigarro e a tosse! –
infantil viagem sob o sol
                        dos trópicos, onde te perdi?

Ó fotocópia do pai
imprudente criatura
amassando com o calo dos pés
os caramujos da esquistossomose:
educado naturalmente por um brejo
povoado por destemidos vermes
que vida era aquela
onde a felicidade se escondia
no pequeno peixe que resistia
                em meio às fezes e ao detergente
                expelidos pelos intestinos da civilização?

Ó minúsculo sonhador
que escapou do coice de cavalos humanizados
pelas placas de trânsito
            e a convivência com as rádios AM –
que motivo havia para se ser feliz
nas axilas daquela cidade
que produzia mangas
           e goiabas melhores do que homens?

Ó incansável infante
que o tempo mastigou com tuas engrenagens
até torná-lo meu antepassado
te procuro tremendo de medo
                     das guerras televisionadas
                                  em horário nobre;
dos vazamentos radioativos
discutidos nas mesas de bar

que estupidez geográfica te levava
a crer que a tua casa seria o próximo alvo?

Ó ignorante de si mesmo
te procuro mijando sobre as flores do jardim
num dia esquecido por todos
por não haver algo de novo nele –
que risos você riu nessas tardes
por nada que valesse a pena
                                     ou merecesse apreço?

Ó curioso moleque
interessado na decomposição dos ratos
na fratura exposta, no fogo nas petroquímicas
me encontro em ti
no olhar     no passo     na voz

e retorno em seguida
            para a merda da vida que será tua. 



* do livro comerciais de metralhadora

7 comentários:

Noslen ed azuos disse...

o outro lado da infância, aquela que tentamos esquecer!

muito bom, parabéns!

ns

Adriana Godoy disse...

Nolli, sempre bom e surpreendente te ler! Beijo

Ana Ribeiro disse...

Belo legado (esse, o das palavras) que deixas de herança, eternizando a universal infância de quem quer que seja. O filho, com certeza, se orgulhará do pai menino que teve.
Beijinhos.

Joe_Brazuca disse...

bela METRALHADA, Nolli !

putz !...forte...mexe e remexe...faz isso não cá gente, sô !...rs

show !

Anônimo disse...

apreço(estima, consideração)
apresso(que está sob pressão)

Acho que vc. quis se referir ao "apreço" com Ç.

L. Rafael Nolli disse...

Anônimo, certíssimo! Muito obrigado pelo toque!
Abraços!

BAR DO BARDO disse...

Nolli,

uma narrativa poética - e tanto!
Uma história triste - e conhecida!

Seja feliz!