sábado, 30 de abril de 2011

Jacques Réda

Jacques Réda intitula-se como um pedestre de Paris. As paisagens captadas pelo pedestre formam um material riquíssimo para a sua poesia. Em especial, o poeta prende sua atenção àqueles que povoam o entorno de suas andanças.

Correspondência

Você me escreve. Como num sonho você me escreve.
Entretanto não é mais você mesmo quem escreve, nem eu
Quem recebe como num sonho sua carta.
As novidades se vão, se extraviam e chegam
Depois de um tempo tão longo que não se sabe mais a que
Fazem alusão essas palavras cuja tinta violenta se apaga;
E que, sobre a foto que ficou pálida dentro do envelope,
Sorri ainda aos sóis que já desapareceram.


Correspondance

Vous m'écrivez. Comme en songe vous m'écrivez.
Pourtant ce n'est plus vous vraiment qui m'écrivez, ni mi
Qui reçois comme en songe votre lettre.
Les nouvelles s'en vont, s'égarent et parviennent
Après un temps si long qu'on ne sait plus à quoi
Font allusion ces mots dont l'encre violente s'efface;
Et qui, sur la photo qui a pâli dans l'enveloppe,
Sourit aux soleils disparus.




Personagens na periferia

Você ainda não acabou de juntar as coisas,
As caixas, as casas, os vocábulos.
Sem barulho o congestionamento cresce no centro da vida,
E você é empurrado para a periferia,
Para os aterros, as auto-estradas, as urtigas;
Você existe apenas em estado de ruínas ou de fumaça.
Mas você vai andando,
Dando a mão para suas crianças alucinadas
Sob este vasto céu, e você não avança;
Você pisa pisa pisa infinitamente na frente do muro da amplidão
Onde as caixas, os vocábulos quebrados, as casas o alcançam,
O empurram um pouco mais longe desta luz
Que vai tendo cada vez mais dificuldades de o sonhar.
Antes de desaparecer
Você volta a sorrir para a sua mulher atrasada,
Mas ela está tomada também por um redemoinho de solidão,
E suas feições são as de uma velha fotografia.
Ela não responde, angustiada e tensa com o peso do dia sobre suas pálpebras,
Com este peso vivo que se move na sua carne e que a sobrecarrega,
E o último vale do mês dobrado no seu colo.




Personnages dans la banlieue

Vous n’en finissez pas d’ajouter encore des choses,
Des boîtes, des maisons, des mots.
Sans bruit l’encombrement s’accroît au centre de la vie,
Et vous êtes poussés vers la périphérie,
Vers les dépotoirs, les autoroutes, les orties;
Vous n’existez plus qu’à l’état de débris ou de fumée.
Cependant vous marchez,
Donnant la main à vos enfants hallucinés
Sous le ciel vaste, et vous n’avancez pas;
Vous piétinez sans fin devant le mur de l’étendue
Où les boîtes, les mots cassés, les maisons vous rejoignent,
Vous repoussent un peu plus loin dans cette lumière
Qui a de plus en plus de peine à vous rêver.
Avant de disparaître,
Vous vous retournez pour sourire à votre femme attardée,
Mais elle est prise aussi dans un remous de solitude,
Et ses traits flous sont ceux d’une vieille photographie.
Elle ne répond pas, lourde et navrante avec le poids du jour sur ses paupières,
Avec ce poids vivant qui bouge dans sa chair et qui l’encombre,
Et le dernier billet du mois plié dans son corsage.

8 comentários:

João Luis Calliari Poesias disse...

Um Baudelaire do século. Abraço

João Luis Calliari Poesias disse...

do século XXI

BAR DO BARDO disse...

observação arguta, calliari

de fato podemos perceber um diálogo com a tradição literária do "flâneur" baudelairiano

obrigado
abraço

Francisco Coimbra disse...

“um poema que se constrói no teatro”

um poema que se constrói no teatro
das personagens que vivenciamos actores
para sermos a pessoa e os outros também presentes
falando dum nós onde nos atamos atendendo
ao que nos toca como toca, como fuga, como alimento,
como… onde as palavras se avolumam crescendo
na procura de falar do que fere e aleija ou distorce
mas também o contrário, tudo correndo
como um rio de margens por nós desenhadas
onde os versos correm a água procurando o mar

quando um verso ilumina uma conclusão
a conclusão é o poema ter vindo e chegado
e, tristes, alegres, satisfeito, preenchidos, ou
o contrário de tudo isso, sabemos que o poema
é um osso que nos alimenta e guardamos
para nele voltar a uma insana vontade de roer
mesmo sem fome, às vezes com fúria, ou
outras tão diferentes dessa e tão outra
como qualquer outra emoção sempre necessária
para sentirmos que a poesia é verdadeira

(recebe-a, como um pensionista, com necessidade)

Henrique,boa escolha, um abraço.

BAR DO BARDO disse...

Francisco Coimbra,

o mundo é um teatro, mas a fala não é minha...

Abraço!

Francisco Coimbra disse...

Henrique,
Dei os parabéns pela escolha, neste caso, do autor e obras. Quanto ao meu comentário, fiquei-me pelo registo poético. Podia ficar pelo que foi um último verso, dizendo ter recebido a poesia como um pensionista com necessidade, recebendo a sua pensão.
Aqui terminei um mês diferente, apostando em deixar “marcas da leitura” em todos os textos lidos. A escolha do teatro como espaço/imagem da realização dos versos do poema, é imagem alimentada pela leitura "Personagens na periferia" e pela escrita que de há muitos anos imagino se desenvolve "em torno no centro" como expressão dramática.
Voltaste a ter dificuldade na publicação, primeiro os códigos html estavam visíveis, agora está perfeito. Quererás partilhar, como surgiu o teu conhecimento deste autor? Abraço!

Adriana Godoy disse...

Bardo, arrasou mais uma vez! Beijo

Anônimo disse...

Francisco,

foi uma opção técnica em parte. Estou exercitando a arte da tradução e considerei bons poemas para partilhar com os colegas de ofício.
Réda é um poeta muito referenciado e reverenciado na França.
Abraço!