quarta-feira, 15 de setembro de 2010

Nu frontal

O diretor pediu que eu retirasse a parte de cima e ficasse somente de calcinha, o que delicadamente questionei. Perante ao seu olhar de reprovação, que era também um olhar de superioridade, ainda esbocei gesto de desabotoar o sutiã enquanto o vigia do estúdio, faxineiros, funcionários da técnica se amontoavam para assistir minha exposição, não sem algum salivamento. Eu me sentia completamente absorvida pela realidade exterior, expulsa do meu círculo de convivência íntima, e por isso mesmo incapaz de assimilar a humanidade dessas pessoas, que terminavam por se transformar em seres cruéis, ao meu ver seres desprovidos de afeto, seja por uma filha, ou pais idosos, ou um bicho de estimação. Tornavam-se mais como figuras bidimensionais pintadas sobre placas de madeira, ainda que me remetessem também a imagens de santos barrocos, estátuas de santos barrocos assustadoramente camufladas pelo negror do estúdio gelado. Quando o diretor se voltou, ordenou com descuido: anda menina, que isso aqui é para hoje. Aí lembrei do meu pai, lembrei que sou filha dele, que sou mineira, que sou mulher, lembrei das igrejas de Ouro Preto, e disse que não podia fazer aquilo de modo algum, que eu não era sozinha, que eu representava a culpa de toda uma geração. Na verdade não disse nada disso, mas foi como se eu dissesse, porque a dignidade dos meus mamilos rijos parecia uma cabeça erguida que de algum modo constrangeu os olhares famintos, que de algum modo soava como um discurso duro que não cede à pressão e nem se quebra facilmente. E foi assim, com uma espécie de pudor obsceno contido na minha nudez armada, que ganhei o papel de protagonista numa das novelas da maior emissora do país.

6 comentários:

Márcia de Albuquerque Alves disse...

Menino, me coloquei na situação... afff que aperto! Ótimo texto

L. Rafael Nolli disse...

Meu camarada, e ela ainda, se passasse por essa provação, teria que fazer o famoso teste do sofá - ela o diretor e mais ninguém. Retrato bem captado!
Abraços!

Victor Meira disse...

Ah, a igrejinha de Ouro Preto... Ela e o rolê do moralismo travando a vida dos passarinhos...

Tiago, achei a narrativa um pouco travada. Senti falta de fluidez e de alma na voz da protagonista. Tenho a impressão de que se tivesse sido contada em terceira pessoa soaria mais verossímil. É muito exterior (ou meio obvio) a forma com que ela olha pros outros ou com que ela se lembra das coisas. Ela não reage contra o pedido do diretor - ao invés disso passa por um longo processo de construção de si mesma até descobrirmos sua ação. Acho estranho, sabe? Parece que no início da narrativa ela é uma pessoa, e no fim é outra, transformada (ou mesmo auto-criada) pelo desenvolvimento da narrativa, pelas próprias ações.

E pô: se ela já tá ali filmando com a Globo, ela já passou por mais coisas na vida do que um xaveco. Acho esquisito tanto pudor assim numa atriz (mesmo que crente).

Desculpe se te chateio com o capricho, viu? É puro carinho.

Abração!

Anônimo disse...

Cara,adorei! Sou atriz e me identifiquei de cara! Êta profissãozinha!... Parabéns, texto do caralho.

Abç,

Sara Inaê

Tenório disse...

Meira, não tem chateação! O texto é o que eu pude. Aliás, talvez a narrativa seja o reflexo do seu autor. Afinal, como é que um cara que atropela o tempo das coisas (ex: engulo a comida sem saborear) pode escrever algo fluido e cadenciado? Abração!

Domingos Barroso disse...

Abrir um riso
agora antes
de dormir:
muito bom
e os sinos
badalam.

Forte abraço,
camarada.