quinta-feira, 15 de abril de 2010

Ponto de fuga

Mastigavam o pernil e a farofa, os copos formigando de coca-cola, a casa simples na penumbra. Eumar Rodrigues Luz espiava o par de irmãs, apenas a menor o encarando sem pudor. A mais mocinha enxugava o choro miúdo com a palma da mão, os olhos enfiados no feijão. Tinham vontade de rir, ainda que não soubessem de quê. A mãe de Eumar esfregou-lhe a mão, com tato desesperado, e suspirou Estou muito contente. O rapaz sentia-se bem em saber que era o motivo dessa alegria silenciosa à mesa. O pai, contudo, alertou-lhe cuidando em ser gentil, Mas você sabe que não pode ficar, tem que voltar, viu filho? Eumar tinha certeza de que o sabor da ceia pobre em sua boca era diferente da dos seus familiares, era como se se lembrasse das coisas pelo paladar. Por exemplo, o refrigerante cáustico, quando ingerido garganta abaixo, fazia arder o tronco lenhado: algumas costelas foram quebradas ao pular muro alto. Suportou noite aperreada entocado no pântano, escondido em mato com carrapato, ouvindo os cachorros loucos. Subindo serra fechada o corpo não era bem-vindo pela ventania gelada a contrapelo, o inverno rigoroso descia feito avalanche. Ia pedindo comida e água pelos lugares, “em charcos onde lâmpadas de mistério desenhavam pedaços de casebres”. Certa vez foi preciso até fazer companhia a uma caduca que o obrigara a costurar enxovais em troca dum prato de sopa e cobertor; foi assim que aprendeu o crochê, hábito que hoje tanto aprecia e lhe acalma. Dois dias de caminhada, encontrou um par de meninos na beira de um precipício sinuoso, o sol a pino: haviam fugido de casa na madrugada, o mais velho foi quem explicou, enquanto apalpava os cabelos crespos do seu protegido:

- Tô levando meu irmão pro programa do Luciano Ruqui, ele quer ser cantor sertanejo.

crédito do trecho entre aspas: Victor Meira

6 comentários:

Lírica disse...

Que texto interessante! Que redação primorosa, Tenório! Que sensibilidade narrativa! Quando um autor nos envolve tanto durante o desenvolvimento, o fim não importa, o desfecho é o de menos. Aliás, as coisas mais nobres e raras, as experimentamos assim, aos poucos, e tocá-las, ainda que por um pouco já é grande privilégio.
Congratulações.

Victor Meira disse...

Conto lindo mesmo, Tenório. E é uma puta honra estar ali no meio dele, mano. É muito bom isso, essa troca, essa conversa, esse interesse.

Maria Cintia Thome Teixeira Pinto disse...

Ótimo texto, bem descrito. Parabens.

Adriana Godoy disse...

Muito bom, bom mesmo. Lindo e gostoso de ler. Beijo.

L. Rafael Nolli disse...

Meu camarada, muito bom! Achei sua narrativa excepcional, sobretudo no "Suportou noite aperreada entocado no pântano, escondido em mato com carrapato, ouvindo os cachorros loucos...." Muito rico, capaz de nos levar imediatamente ao ambiente sugerido!

Barone disse...

Muito bom Victor. Gostei muito da construção.