terça-feira, 24 de novembro de 2009

Planos de Vôo

imagem de Hugo Martins



1 – os motivos


Sempre haverá um rompimento

ou discussão envenenada.

Por um momento, bem sabemos,

motivo é o que menos há.


Sempre haverá uma dor de perda

que só se perdendo para esquecê-la.

E há, sempre há, motivo obscuro

nunca suposto, jamais revelado.


Sempre haverá demissão inesperada,

concepção indesejada, inoportuna,

surgida em hora ingrata pela mão de sujeito

sem-nome, sem-vergonha, sem-cara.


(Nenhum que justifique ou que explique)


2 – a forma


É público, porém limpo –

outros verão o espetáculo,

não aqueles de apreço.


(Em casa, o sangue manchará

cortinas, desvalorizará o imóvel.)


É público, porém limpo –

outros verão o show, serão

aqueles que por um ou dois dias

deixarão de dormir,

beberão café em excesso,

terão um cigarro queimando os dedos.


Serão aqueles que esquecerão logo,

que comentarão via telefone,

especularão pela mãe – pobrezinha! –

e levarão o episódio às manicures.


É público, porém limpo.

Logo a ambulância fará o seu serviço

e a chuva ou as varredeiras, o seu.


(Em casa, o sangue entupirá

o ralo e excitará o cão.)


3 – o viaduto

a) Demolir seria insano, já que é via importante que oxigena o corpo da cidade. Demolir seria pôr fim a engenharia respeitável, amputando a paisagem. Bem sabemos que sempre haverá outros métodos a serem utilizados: a corda e a faca preenchem o cardápio.

Demolir seria insano, já que é veia vital que irriga o coração da cidade. Demolir seria incinerar o dinheiro do contribuinte, aleijando o cenário. Bem sabemos que sempre haverá outras formas convidando ao ato: revólver dormindo debaixo do travesseiro, mata-rato na prateleira final do supermercado.


b) Policiar se mostra inútil – seria o mesmo que montar base sobre os ossos dos cavalos ou à estátua de um elefante cinzento.


Policiar se mostra inútil, posto que se trata de região rica em possibilidades: os rios convidam ao afogamento e as margens barrentas à decomposição.


E quando tudo estiver sitiado, sobre a cômoda desaparecerá uma dezena de comprimidos da mãe.


4 – a rota

Nenhum semáforo que avermelhe

ou placa de trânsito que obrigue


(O sol

projetando a sombra)


Caminho pouco imaginativo

de paisagem em baixa resolução


(O vento

desmanchando o penteado)



5 – instante


Último pensamento

incapaz de ser compartilhado

pela brutalidade do pouso:

nada é mais belo que o pôr-do-sol

dourando as bordas do abismo.


*

12 comentários:

Tenório disse...

Tive a honra de ler esse poema em primeiro mão, pelo menos entre o pessoal daqui. E repito: brilhante, fundador de um novo gênero. A poesia do Nolli é crônica-cinematográfica, podia ser prosa, mas não deixa de ser pura poesia.

É genial.

Parabéns, camarada!

Adriana Godoy disse...

Nollli, um poema como esse merece realmente aplausos. Inetensamente belo e sugestivo. Parabéns ppor mais esse trabalho. Beijo.

Sidnei Olivio disse...

Depois de ler esse poema, só me resta associar aos comentários da Adriana e do Tenório. Grande Nolli, um abraço.

Helena disse...

Beleza Nolli. Forte, intenso, inesperado em alguns momentos. Como deve ser um bom poema.

abração,

Helena

Joe_Brazuca disse...

(Em casa, o sangue entupirá

o ralo e excitará o cão.)


pronto...


espetacular, Nolli !

Sue Castro disse...

Como eu disse anteriormente, acho incrível sua sutiliza ácida... O poema merecia sair da gaveta!

TON disse...

Só um poema poderia ser também um conto, uma crítica, uma crônica, um filme, um recado. Só um poema poderia conter em poucos versos o que seria dito por um livro. Só um poeta poderia fazer tal poema. E você, Nolli, é dos bons, é dos grandes.

Ton

Tenório disse...

Concordo totalmente com o Ton acima.

L. Rafael Nolli disse...

Amigos, agradeço pelos comentários!

Benny Franklin disse...

Superando expectativas.

Maria Cintia Thome Teixeira Pinto disse...

Nolli
Serus versos são de uma tristeza e de uma realidade quase que viva. Viva!
Revira-me do avesso
não sobrariam nem bordas douradas...


Excelente. Incrível teu poema!!!!!


Cíntia Thomé

Renata de Aragão Lopes disse...

Nolli,

que poesia proseadora
simplesmente GENIAL!

Do começo ao fim.
Cada um dos planos de voo.

Demorei a vir comentar
por absoluta falta de tempo:
conclusão de monografia
em uma pós-graduação.

Mas o atraso foi proveitoso:
li e reli,
sobretudo "os motivos",
por várias vezes! : )

Um beijo.