imagem de Hugo Martins
1 – os motivos
Sempre haverá um rompimento
ou discussão envenenada.
Por um momento, bem sabemos,
motivo é o que menos há.
Sempre haverá uma dor de perda
que só se perdendo para esquecê-la.
E há, sempre há, motivo obscuro
nunca suposto, jamais revelado.
Sempre haverá demissão inesperada,
concepção indesejada, inoportuna,
surgida em hora ingrata pela mão de sujeito
sem-nome, sem-vergonha, sem-cara.
(Nenhum que justifique ou que explique)
2 – a forma
É público, porém limpo –
outros verão o espetáculo,
não aqueles de apreço.
(Em casa, o sangue manchará
cortinas, desvalorizará o imóvel.)
É público, porém limpo –
outros verão o show, serão
aqueles que por um ou dois dias
deixarão de dormir,
beberão café em excesso,
terão um cigarro queimando os dedos.
Serão aqueles que esquecerão logo,
que comentarão via telefone,
especularão pela mãe – pobrezinha! –
e levarão o episódio às manicures.
É público, porém limpo.
Logo a ambulância fará o seu serviço
e a chuva ou as varredeiras, o seu.
(Em casa, o sangue entupirá
o ralo e excitará o cão.)
3 – o viaduto
a) Demolir seria insano, já que é via importante que oxigena o corpo da cidade. Demolir seria pôr fim a engenharia respeitável, amputando a paisagem. Bem sabemos que sempre haverá outros métodos a serem utilizados: a corda e a faca preenchem o cardápio.
Demolir seria insano, já que é veia vital que irriga o coração da cidade. Demolir seria incinerar o dinheiro do contribuinte, aleijando o cenário. Bem sabemos que sempre haverá outras formas convidando ao ato: revólver dormindo debaixo do travesseiro, mata-rato na prateleira final do supermercado.
b) Policiar se mostra inútil – seria o mesmo que montar base sobre os ossos dos cavalos ou à estátua de um elefante cinzento.
Policiar se mostra inútil, posto que se trata de região rica em possibilidades: os rios convidam ao afogamento e as margens barrentas à decomposição.
E quando tudo estiver sitiado, sobre a cômoda desaparecerá uma dezena de comprimidos da mãe.
4 – a rota
Nenhum semáforo que avermelhe
ou placa de trânsito que obrigue
(O sol
projetando a sombra)
Caminho pouco imaginativo
de paisagem em baixa resolução
(O vento
desmanchando o penteado)
5 – instante
Último pensamento
incapaz de
pela
dourando as
*
12 comentários:
Tive a honra de ler esse poema em primeiro mão, pelo menos entre o pessoal daqui. E repito: brilhante, fundador de um novo gênero. A poesia do Nolli é crônica-cinematográfica, podia ser prosa, mas não deixa de ser pura poesia.
É genial.
Parabéns, camarada!
Nollli, um poema como esse merece realmente aplausos. Inetensamente belo e sugestivo. Parabéns ppor mais esse trabalho. Beijo.
Depois de ler esse poema, só me resta associar aos comentários da Adriana e do Tenório. Grande Nolli, um abraço.
Beleza Nolli. Forte, intenso, inesperado em alguns momentos. Como deve ser um bom poema.
abração,
Helena
(Em casa, o sangue entupirá
o ralo e excitará o cão.)
pronto...
espetacular, Nolli !
Como eu disse anteriormente, acho incrível sua sutiliza ácida... O poema merecia sair da gaveta!
Só um poema poderia ser também um conto, uma crítica, uma crônica, um filme, um recado. Só um poema poderia conter em poucos versos o que seria dito por um livro. Só um poeta poderia fazer tal poema. E você, Nolli, é dos bons, é dos grandes.
Ton
Concordo totalmente com o Ton acima.
Amigos, agradeço pelos comentários!
Superando expectativas.
Nolli
Serus versos são de uma tristeza e de uma realidade quase que viva. Viva!
Revira-me do avesso
não sobrariam nem bordas douradas...
Excelente. Incrível teu poema!!!!!
Cíntia Thomé
Nolli,
que poesia proseadora
simplesmente GENIAL!
Do começo ao fim.
Cada um dos planos de voo.
Demorei a vir comentar
por absoluta falta de tempo:
conclusão de monografia
em uma pós-graduação.
Mas o atraso foi proveitoso:
li e reli,
sobretudo "os motivos",
por várias vezes! : )
Um beijo.
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