sexta-feira, 24 de abril de 2009

Resistência

O mundo mudou e eu ainda não me dei conta. Ainda me pego contemplando as estrelas, desafiando a lua e invocando São Jorge para me proteger – com sua espada - do dragão. Muito embora, também aspire corromper o herói em vilão.

O mundo mudou e eu ainda fico de bobeira, vagando noite adentro, madrugada inteira, só para colorir e admirar borboletas. Ainda busco significados nas lendas, ainda me reservo o direito de cultuar uma Helena. Ainda desenho, costuro e cinjo palavras de otimismo, mesmo quando o mundo parece-me um enorme abismo. Ainda falo pelos cotovelos mesmo sabendo que o momento pede silêncio. Ainda me recuso a ouvir o óbvio, porque o tédio é o meu ópio. Porém, ainda alimento o opróbrio para fabricar uma bomba-relógio.

O mundo mudou e eu ainda caminho olhando para debaixo da ponte. Só para ver as lavadeiras tecendo longas e alvas cantilenas e as crianças festejando nas águas poluídas as suas existências. O mundo mudou e eu ainda escrevo versos em prosa; ainda falto aula, dissimulo em prova. Ainda desafio o professor, ainda rio para aliviar minha dor.

O mundo mudou e eu ainda leio José de Alencar, ainda choro com o beijo na novela. Torço pela boa sorte da personagem e me penalizo com o castigo do antagonista. Ainda me divirto com a dualidade dos espiritualistas e com a ignóbil racionalidade dos positivistas e de todos os demais istas. Ainda me levo à risca e busco verdade na retidão, só para ouvir a voz do meu coração. Ainda procuro ser justa com um irmão e ser-lhe fiel como a um bom cristão. Ainda acredito em tentação, pecado, obsessão, mas me recuso a ouvir sermão...

O mundo mudou e não deu tempo eu escrever - à mão-livre - uma carta de amor. Não deu tempo eu colar nas curvas-linhas de minha grafia uma boca pintada de carmim. Não deu tempo eu encharcar o texto de perfume e dedicar, ao amado, um fragmento da prosa poética de Eça de Queirós. O mundo mudou e eu não pude cuidar, ninar, alimentar o meu amor.

O mundo mudou e eu ainda sinto vontade de me sentar no banco da praça, e ficar lá - por algum tempo - entre flores, folhas, insetos e pássaros. O mundo mudou e eu ainda sinto saudade do sítio, de tomar banho de chuva quando o sertão anuncia inverno. De mergulhar na água quente do açude nas madrugadas enluaradas.

O mundo mudou e eu ainda busco a Deus e me escandalizo quando, por acaso, sinto-me ateu. O mundo mudou e eu ainda insisto em quebrar barreiras, evocar uma revolução que, de alguma forma, ressignifique simbolicamente os valores humanos.

O mundo mudou e eu mudei? Não sei, não sei... Sei que estou a me perguntar (e já faz algum tempo): ― Quem eu sou?

Enquanto tantas pessoas estão no mundo buscando prazer na transitoriedade e acreditam que há felicidade na superficialidade, eu me pergunto: ― Onde está o sentido da vida?

Talvez, para muitas pessoas esse comportamento, essa viagem, esse mergulho em torno do ser “eu” pareça pura perda de tempo, considerando que o mundo mudou!...



* Texto selecionado, em 3◦ Lugar, na categoria crônica, no XX Concurso Internacional Literário de Inverno, promovido por Arnaldo Giraldo (Edições AG), em agosto de 2006. A escrita fora selecionada para integrar o livro "Ritmo Vital". FERNANDES, Hercília M. Resistência. In: ____. GIRALDO, Arnaldo (Vários Autores). Ritmo vital: conto, poesia e crônica. All Print Editora: São Paulo, 2007, p. 108-109.


** A prosa-poética Resistência também integra o livro: Agá-Efe: ruínas & quimeras. (FERNANDES, Hercília, 2006). E, encontra-se disponível no site: Artigos.com.


22 comentários:

Graça Pires disse...

Minha querida Amiga Hercília, que texto lindo !O mundo mudou mas você continua a escrever maravilhosamente bem e a acreditar nos mesmos valores de antes. Gostei imenso de a ler. Um beijo e bom fim de semana.

VFS disse...

"o mundo mudou (...)"

porque o universo do coração continua a crescer,
porque o ser continua a perguntar,
porque a viagem não acabou.

Hercília, o meu mundo já mudou e agradeço(-te).

beijos

Unknown disse...

Hercilia!
Que prosa magnífica!

As indagações filosóficas, que estacionam no questionamento desenvolvido por você, deixa uma reflexão positiva em todos nós.

O mundo muda a cada poeta que o questiona, o observa, e o revela.

Parabéns, amiga querida!

Beijos

Mirse

Adriana Godoy disse...

Linda prosa poética. Mereceria o primeiro lugar...às vezes é o contrário, as coisas permanecem e nós mudamos. Mas do jeito que escreveu, remete a uma certa nostalgia de coisas que já não podemos mais fazer(ou fazer pouco) nesse mundo tão transformado. Parabéns. Bj

líria porto disse...

depois de te ler, hercília, até recoloquei um poema antiiiiiiiiigo em meu blog...
besos

cisc o z appa disse...

m.a.r.
a.
v.
...ida
já foi
já é
ainda-não
q.
em silêncio muda

é isso: ritmo vital!

evoé!

Sidnei Olivio disse...

Assino embaixo do que disse a Adriana. Parabéns.

l. rafael nolli disse...

...bela prosa poética. O poeta diante do mundo, tentando desvendá-lo, compreendê-lo....

Helena disse...

bonito, Hercília. Gostei.

beijo,

Helena

Hercília Fernandes disse...

*Graça,

fico imensamente feliz com a sua vinda ao Poema Dia. Suas palavras, sempre calorosas, são preciosas para mim.

*Vicente,

lindas e sábias palavras. Muito obrigada, meu amigo, pela visita e delicadezas expressas.

*Mirse,

alegra-me saber que apreciou essas curvas-linhas em minha escrita.

*Godoy,

assim você me deixa ligeiramente a-ca-nha-da... Muito obrigada, querida poeta!

*Líria,

contenta-me saber que essas curvas-linhas lhe reportaram a antigas e belas paisagens. Besos.

*Fernando,

a poesia muda todos os vãos [e nãos] espalhados pela casa.

*Sidney,

você também me deixa a-ca-nha-da. Grata pelas palavras!

*Rafael,

a poesia é uma forma de resistência, de luta desarmada... Obrigada por suas considerações.

*Helena,

grata pela leitura e doce comentário.


Forte abraço, Amigos do Poema Dia!

Beijos :)
H.F.

Beatriz disse...

Bela prosa. Estou espantada com seu espantamento! Legal, essa surpresa.
gostei da entrega

Assis de Mello disse...

Logo na sequência do poemaço do Nolli, vem esta primorosa prosa confessional. Adorei, Hercília.

Joe_Brazuca disse...

estou no seu time....
muito bom !
abraço

Benny Franklin disse...

Excelente!

Delírios de Maria disse...

O AMOR É IMORTAL

Um homem que sabe amar nunca vai embora
ele sempre estará presente na vida da sua amada
ele será inesquecível
tem cheiro de rosas vermelhas
com o amor ninguém consegue acabar
ele nos acompanha mesmo que em silêncio total
O amor é imortal
silêncioso
por isso pensamos que ele foi embora
mas não
ele estará sempre presente
em nossas vidas
o prazer de ser amado
é o melhor prazer
delírios

Hercília Fernandes disse...

*Compulsão,

muito me alegra a sua visita e palavras.

*Assis,

fico feliz que tenha apreciado o texto.

*Joe,

me deixa contente.

*Benny,

você também me deixa a-ca-nha-da.

*Maria,

lindo texto. Muito obrigada por sua delicadeza.

Forte abraço em todos os amigos do Poema Dia.

Beijos :)
H.F.

Anônimo disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Anônimo disse...

O mundo mudou e nunca vai parar de mudar, sejam elas mudanças boas ou más. O mundo é algo que facilmente pode ser modificado, mas tão pouco manipulado.
Se eu puder ter a honra de ter a visita de vocês em meu blog - peço que visitem o Insane's Words do qual estou manuseando atualmente -, me seria gratificante. Estou realmente gostando do blog. Queria encontrar um blog com textos e poemas bem trabalhados como esses.
Abraços.

Maria Clara disse...

O mundo mudou e mesmo assim se resiste a mudanças que não são lá tão novas...

Bela prosa-poética, H.F., com significados intensos e profundos!

Parabéns!

Grande abraço,
Maria Clara.

Felipe Costa Marques disse...

Belo texto!

Congratulações!

Hercília Fernandes disse...

Yago, Maria Clara e Felipe,

agradeço as visitas, leituras e considerações.

Forte abraços em todos e todas do Poema Dia.

Beijos :)
H.F.

Maria Cintia Thome Teixeira Pinto disse...

Super cronica...
O sentido está em cada manhã de sol...
Parabens

cintia thome