sexta-feira, 24 de abril de 2009

Comerciais de Metralhadora

A mãe de todos os homens


O anúncio que leio sobre você não me diz nada
a respeito de suas felicidades domésticas:
é pequeno aviso para quem se habilite a chorá-la
até que as lágrimas salguem o café
ou que suspiros mais pesados
– sempre uma ponderação
sobre a nossa própria morte –
apague todas as velas
e não reste nada a fazer além de sepultá-la.

É sucinto esse papel – que amanhã
irá embrulhar pernil e asa de frango –
ao convocar todos para o seu enterro:
sua mais importante data, a única que mereceu
ser impressa e divulgada (provêm disso
o batom nos lábios para receber as visitas
e o sapato novo,
agora incapaz de incomodar seus calos
e joanetes).

Nada fala ele sobre as suas vitórias cotidianas –
a força com que suportou as surras do marido,
que vinha a cada dia com a mão mais dura e calosa:

os beijos alcoólicos
que nunca lhe deram um orgasmo.

Nada fala sobre sua heróica forma de agüentar
a fome de seus filhos, comendo a terra da parede –
os vermes e as lombrigas exaltadas
diante das propagandas da Coca-Cola
& do Mac’lanche Feliz:

a lágrima nos olhos
contrastando com a sede das bocas.

Talvez em outra época,
no colo do socialismo,
seria uma estátua sua que ergueriam hoje na rua.
Essa mesma rua que tem o nome
de alguém que não lhe diz respeito,
que lhe rouba um pouco por dia
nos impostos, nas contas de luz
e de água.

Uma estátua seria o seu destino
por arrastar cinco filhos
que nasceram um nas costas dos outros:

– e lhe arrancaram com os dentes o bico dos seios;

– e lhe desgraçaram o ventre e as costas,
como a um campo cansado de produzir;

– e lhe tornaram velha antes do tempo,
com saídas noturnas, brigas de canivete,
notas vermelhas no boletim;

– e lhe adoeceram em doses homeopáticas,
ao se tornarem, a cada queda,
o pai que tinham, propenso a discórdia
e ao grito incivilizado.

Nada me diz sobre a sua luta habitual
essa miserável advertência que me chega às mãos,
que leio antes de correr os olhos
pelas notícias do futebol
e a seção de quadrinhos.

Nada sei sobre o modo que lidou
com os amores de seu marido:
as damas do baralho
e as senhoras dos prostíbulos,
que comiam o pão de seus filhos
ou trocavam o leite extraviado
por uma dose de Martini seco.

Assim como nada sei sobre a sua resignação
ao lidar com seus próprios amores: o rádio AM,
onde sabia dos que estavam amanhecendo presos
ou degolados, e as conversas de feira
a propósito do podre na carne dos tomates
e os mandruvás insurgentes na alface.

Se você havia depositado suas fichas no futuro,
esperando uma mudança, eu pouco sabia; mal
consigo imaginá-la sonhando com algo de brusco
que finalmente inaugure
o reino dos homens sobre a terra

(se sua aposta havia sido lançada
na faca cega da cozinha, na ingestão do mata-piolho,
no salto pela janela, tampouco consigo saber).

Quase sinto o mundo,
esse mundo em que vivemos,
repelir você, varrendo para debaixo do tapete
sua vida feita de derrotas sucessivas –
para que na vitrine fiquem apenas
aqueles que entraram no ringue armados,
donos de roteiros escritos a sangue
lhes garantindo um futuro glorioso.

Esse papel que leio não passa de um monte
de palavras agrupadas em torno do objetivo
de esquecê-la de uma vez por todas.

Fecho o jornal e morro contigo.






*

18 comentários:

Renata de Aragão Lopes disse...

Simplesmente incrível!
Também morro com vocês.

Helena disse...

Maravilhoso, Nolli! Amei de paixão! Forte, bem escrito, comovente.

abração,

helena

Assis de Mello disse...

Poema majestoso. De tirar o chapéu.
Parabéns, Nolli

Tenório disse...

Tenho vontade de me atropelar e dizer tudo que disseram acima: incrível, maravilhoso, bem escrito, comovente, majestoso, de tirar o chapéu, tirar a roupa, ficar nu, muito emocionado. Seus poemas fazem isso comigo: vontade de voltar a fazer poesia que me arranca um pedaço. Muito bom, camarada!!!

mariagomes disse...

Curvo-me perante este poema.

E direi mais, estamos perante um dos maiores poetas brasileiros contemporâneos.

Benny Franklin disse...

Bravo, Nolli!

Todo poema tem o dever de combater (não deve ser covarde contra a mesmice) e resistir (sua mira deve ser certeira).

E este: cumpre o seu papel social.

Um dos melhores que li, aqui.

De prima!

Tião Martins disse...

Nolli usa a poesia como arma. Tomara que ele vença a guerra.

Adriana Godoy disse...

Arrasou, Nolli. Fecho os olhos e sinto o poema. Beijo.

cisc o z appa disse...

nolli

a poesia precisa
na imprecisão do corte

abre e não fecha
abre...

bravo!

Sidnei Olivio disse...

Viva a poesia! A mãe de todas as artes.

Hercília Fernandes disse...

Rafael,

eu amei o seu texto. Forte, intenso, incisivo. Nos acorda, remete à reflexão, e contribui para mudança de hábitos.

Adoro dividir página com você. Pois você demonstra ser um escritor de linhas sensivelmente poéticas e apresenta elevada riqueza contextual.

Mas, voltando ao texto, eu adorei o fechamento, destacando-o:


"Esse papel que leio não passa de um monte
de palavras agrupadas em torno do objetivo
de esquecê-la de uma vez por todas.

Fecho o jornal e morro contigo".


Muito bom, poético e incisivo!

Abraços :)
H.F.

Beatriz disse...

Imagens fortes em rajadas de metralhadora. A poesia manifesto, resistência. O livro bom, disse o Maiakóvski é claro, necessário a mim, a vocês, ao camponês e ao . será?

Márcia disse...

que poema, Lucas! que poema! fiquei lembrando a primeira vez que li A Mãe, de Gorki: a mesma emoção, o mesmo estupor, o mesmo silêncio de chumbo pesando por dentro.
bravíssimo, poeta. bravíssimo!
um beijo daqui.

l. rafael nolli disse...

Fico, sinceramente, sem palavras. Agradeço pela leitura e pelos comentários! Abraços!

Felipe Costa Marques disse...

Sem palavras. Sou seu fã, camarada.

Abraços!

flaviooffer disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
flaviooffer disse...

Sensacional o poema. Uma reflexão do absurdo da morte, não em seu sentido metafísico, mas na estranheza em que, a maioria de nós, não dá a mínima pelos que caminham conosco. Somos incapazes de enchergar além do próprio umbigo. Esta nossa insistência em não existir e em não deixar o outro existir é o que nos mata. É o que nos faz fechar o jornal e morrer para o mundo, para a realidade. Bravo, meu amigo!

Unknown disse...

Maravilhoso.
Impossível dizer outra coisa depois de ler o poema.
Parabéns :-)