quinta-feira, 12 de março de 2009

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Entardecer no Sahel
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Um arrepio de vento que passou
lonjuras de albatrozes, planícies
imensidões de orvalho...
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- assim era ela
que se choveu pela tarde
enovelou-se na noite
enevoou a manhã
mas não ficou
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Quisera
eternizar seus passos
naqueles campos de relva
mas
agora
só esta foto me resta
e por isso dobro-me
no bafo tórrido
deste lajeão de pedra
a divagar
num pôr de sol
rente à touças de carrapicho
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Habita este meu viés
uma velha naja cuspideira
e pequenos nimbos de moscas
pairam
acima do arbusto espinhento
que silencia
entre o fulvo do céu
e este balão de viuvez imposta
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Amadou, meu amigo Bambara
Moussou e duas inglesinhas
sorridentes
( a mais vívida é Morag; a outra
nunca soube )
ajudam-me a destocar grilos
da terra seca
e não questionam minha invalidez
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Hoje sou das moscas
Gafanhotos roeram tudo por aqui
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Impressiona
o olhar dos tuaregues
Olhos graves
que se destacam
das faces ocultadas
e levam corpos
que nunca param
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Impressionam os perfis
de umas mulheres magras
quando se vão ao longe
vestidas de preto como se em luto
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- carregam baldes, vitualhas na cabeça
e sorriem com polidez
quando cruzamos suas rotas
na savana ressequida
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( Que povo é esse
de mulheres tácitas
e homens nunca vistos ? )
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Os Bambara são coloridos, os Dogon
- homens e mulheres
coloridos e alegres
a trajar estampas como jardins
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Possíveis cromos da fêmea numa tarde saheliana:
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1-
saias longas, seios nus
mãos de couro de réptil
a socar nos pilões o amendoim
o milhete
que o inseto refugou
cantando-------------------------------
cantando---------------
cantando
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2-
um olhar enxuto e bondoso
o filho às costas
caminhando ao sol
sem dar um pio
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3-
amamentando à sombra
cantando, cantando
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4-
publicando
um tratado sem letras
sobre as artes
de superar e de sorrir
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Ó Mourdiah, Ó Dilli, Ó Nara !
Bendito o aconchego de teus
corações
nessas casas de adobe
e estrume de cabra
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Benditos tuas roças
----------------infibuladas
----------------proibidas
o ensinamento
das brigadas fitossanitárias
as lições da locusta, suor
e guerra química
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E mais que bendita a imagem
daquelas crianças rezando e batendo
latas na cabeça
numa procissão de mirrados
a implorar por chuva
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O Brasil e sua verdura deitam-se ao longe
além do tempo
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( - levou ela consigo
suas imensidões de orvalho- )
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e também o Niger
com seu delta inusitado
corre longínquo
e não há mais rios
por aqui
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No bafo desta pedra exangue
não há remédio:
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a vida
num cantil
de água salobra
e o mosquedo turbina
e uma naja me espreita
despejando a noite
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10 comentários:

Beatriz disse...

Muito belo e no estilo vertiginoso, pleno de referências que informam o leitor.
gostei particularmente das mãos das mulheres

Isa Trivelato disse...

Muito intenso, me lembrei de alguns classicos da literatura, como "Vidas Secas" de Graciliano Ramos, retrata um Brasil do qual muitos só veem através dos livros!
Parabéns, muito lindo!

Adriana Godoy disse...

São raros os poemas desse quilate que satisfazem de uma forma plena os olhos e o coração de quem os lê. Uma construção magnífica que reporta a terras distantes, com uma gente colorida, pobre e nobre, mas que vivem intensamente as agruras de sua terra. Há passagens surpreendentes e mesmo a referência ao Brasil é sublime. O final condiz com a grandeza do poema e nos deixa uma satisfação íntima de que o autor conseguiu. Bravo, Chico.

Adriana Godoy disse...

errata: "mas que vive" no lugar de "mas que vivem".

Benny Franklin disse...

Não é por acaso que sou seu fã!

Anônimo disse...

Grande Assis! Um longo poema que se lê num só bote, sem perder uma sílaba. Construção soberba, metáforas magníficas e descrições poéticas sem adjetivos. Basta dessa análise capenga a um poema que transcende qualquer análise.
Abraço!!
Sidnei

Helena disse...

Parabéns, Assis, belo poema!

Adriana Riess Karnal disse...

belíssimo!

Barone disse...

Belíssimo, como sempre. Os poemas de Assis Mello são artefatos delicados de esmerada construção.

guru martins disse...

...simplesmente
muito bom!!!
Dos Tuaregues
vem o Blue...

aquele abraço