terça-feira, 17 de janeiro de 2012

O Capítulo 1 seria assim:

Viaduto da Borges de Medeiros, Porto Alegre.

Já fazia alguns minutos que olhava ora para o horizonte, ora para baixo, meio que admirando a vista, meio que admirando seus próprios pensamentos. Estes lhe eram mais freqüentes quando se apoiava no alambrado do viaduto, olhando entre os prédios de forma cada vez mais nebulosa, conforme a noite chegava.

Muitas pessoas passavam às suas costas, apressadas, sem talvez lhe notar. Caminhavam simplesmente, o miravam quiçá, mas não interviram de forma alguma em seu transe, em suas divagações solitárias consigo mesmo. Parecia que a noite chegava às pessoas junto com a fome, o sono ou algo assim... Uma pressa incontida, que lhes fazia olhar sempre à frente, meio que desviando umas das outras, se chocando às vezes. Quantos não eram os que morriam porque se quer percebiam os automóveis, quem dirá um guri encostado no corrimão, de costas para a rua.

E ele seguia ali, parado, vagando entre idéias ou entre nada, pois, sabia, nem sempre pensava, e isso lhe confortava. Quando não pensava, tudo era melhor, mas o problema se tratava exatamente em não conseguir esvaziar a mente. E sua mente era rápida, inconstante, fervorosa, ardente, atormentadora, torturante. Não conseguia controlar seus pensamentos, e então, como muitas vezes já o fizera, ia àquele viaduto, no centro da cidade, e ficava lá, nos fins de tarde tumultuadas de pessoas apressadas para chegarem a suas casas, deixando seus pensamentos tomarem conta de si, como se fosse ele deles, e não o contrário.

O movimento da rua diminuía conforme a noite se prolongava. Isso era estranho: conforme a noite chegava, mais pessoas saíam às ruas e, de repente, elas sumiam, desapareciam. Por que, ao contrário, a intensidade da noite não era seguida pela intensidade de pessoas caminhado às suas costas? Talvez fosse o fascínio e o medo que a noite causava: no começo, parecia que a curiosidade tomava conta das pessoas, e todas saíam de seus escritórios e fábricas para ver o dia ir embora; mas logo que o dia se esvairava, o sol sumia e a luz se extinguia, o medo lhes tomava conta, e todos corriam para suas casas, fechavam suas portas e dormiam, para que aquela escuridão fosse embora rapidamente, e o dia voltasse logo quando acordassem, e tudo tivesse dado a impressão de ter sido um sonho.

O único que se mantinha ali era aquele rapaz, de costas para todo esse movimento, olhando simplesmente a noite chegar, sem prestar atenção nisso, todavia. Sua atenção ia e vinha como a maré, e só se dava conta disso quando percebia a luz se tornar ainda mais escassa, e as luzes dos faróis dos carros começarem a se confundir com as luzes dos prédios, numa confusão visual que lhe fazia sucumbir mais ainda em pensamentos longínquos, distantes, em terras sem nome, a pessoas sem identidades.

Se posicionar daquele jeito no alambrado do viaduto era uma coisa comum para ele: fazia sempre naquele horário, quase todos os dias, principalmente os de semana, que, para ele, eram os mais monótonos. Às vezes, levava consigo uma lata de cerveja, algo que facilitasse a fuga de seus pensamentos que, parecia, lhe tornavam sufocantes sempre no mesmo horário. E conforme a noite tomava conta das ruas, fazia o mesmo ritual: erguia a perna direita primeiro, e a colocava no primeiro vazamento da ponte antiga, como que pensando no que fazia, mesmo que, geralmente, sem pensar em nada. Ficava assim por alguns minutos, parado, até apoiar o outro pé, da mesma forma, e ficar suspenso no ar, olhando para baixo, largando a lata de cerveja sobre o alambrado, quando a tinha em mãos, ou quando se apoiava, enfim. Mais alguns minutos, até os pensamentos se tornarem mais claros, e deveras começar a pensar no que fazia, e a escuridão ia se desfazendo aos poucos pela sua mente, passando por ela os anos anteriores, a vida que por ele passara, as noites insones, cada gota de água gelada que lhe caíra nas costas em banhos noturno, em chuveiros ruins, e cada sensação que tivera nesse tempo todo – tempo curto, mas marcante como ferro quente encostado na pele de um animal vive, que estremece não pela dor, mas por saber que aquela marca será para sempre.

Conforme a escuridão se vai de sua cabeça, suas pernas se tornam mais firmes, e o apoio das mãos vai sendo dispensado, até que a coragem lhe possibilite subir mais um degrau do alambrado, e este baixar de sua cintura, e o vento já perturbar seu equilíbrio aí. E se antes as pessoas não lhe prestavam atenção porque estavam apressadas, a essa hora já estavam talvez dormindo em frente à televisão, e ninguém havia ali que lhe recomendasse descer, ou lhe estimulasse subir ainda mais, para ver até onde suportaria o vento. Estava só, com os braços abertos sobre a avenida lá embaixo, o busto suspenso, olhos abertos e o vento no rosto, lhe transfigurando não só sua face, mas seus pensamentos, e todo o universo de nostalgia que lhe rodeava naquela quinta-feira de clima ameno.

Por um momento, porém, e como sempre, seus olhos se focaram por entre os prédios, o fazendo baixar os braços e novamente se apoiar-se no alambrado do viaduto. Vagarosamente como subiu, desceu pé a pé os vazamentos da ponte, um após o outro, num tempo superior ao que essas linhas conseguem descrever. Na sua cabeça, mais vagarosamente ainda, meio que acordando de um longo hibernar, sem entender exatamente a causa de tamanha escuridão da noite, chegada num piscar de olhos, num raio de consciência.

De volta à terra firme, e como sempre, olha para os lados meio que envergonhado, meio que tentando entender o que se passara, e mesmo sabendo que aquilo se passara sempre, ou quase sempre, quase todas as noites, e quase sempre no mesmo horário. Mãos paralelas ao corpo, vira-se, simplesmente, e sai andando na rua, com a naturalidade verdadeira de quem vive algo deveras simples. Os passos lentos iniciais são acompanhados por outros cada vez mais velozes, até que sua caminhada de volta à casa se torna uma corrida, mais e mais rápida, até suas pernas pararem de serem sentidas, e o vento voltar a bater no seu rosto, como se ainda estivesse lá, prestes a cair do viaduto, com os braços abertos sobre a avenida movimentada, com a noite tomando conta da paisagem, e seus pensamentos desencontrados. A diferença era que, agora, e como sempre, estava voltando para casa.

Nenhum comentário: