sexta-feira, 15 de janeiro de 2010

Não se fala com os muros



Mergulho na Rua Jardim Botânico.
De um lado, murada em perspectiva
- cheia de pichações e grafites fantásticos.
Do outro, palmeiras imperiais e: semiocultas
- a não ser que erga meu olhar,
nunca conhecerei seu cume rebentando nuvem.

* * *

Na verdade: mergulhei na Rua Jardim Botânico.
Agora estou diante de uma folha reciclada,
Lembrando sensações.

Me frustra que algumas palavras
Em nada lembrem um lugar.

* * *

À minha direita (naturalmente caminho saindo da Gávea)
Está a muralha surrealista:
Uma profusão de cores, favelas oníricas,
Semblantes de meninos com os olhos vazados.
Tenho a impressão de estar de fronte a uma mitologia moderna.

Aqueles desenhos parecem de corpos etéreos,
O corpo da cidade quando dorme,
O seu inconsciente coletivo derramado dos sonhos cariocas
Até se compactarem contra o muro.

Mas não se fala com os muros…

* * *

Artistas pobres geraram, através de grafites-desabafos,
A fotografia subjetiva do Rio.

* * *

Ao terminar essa dissertação, levantarei da mesa desse café, enterrarei esse papel ao pé da décima terceira palmeira (contando a partir da primeira fileira que, da rua, fica à direita de quem entra pelo portão principal) do Jardim Botânico e, feito num jogo de subterrâneos, deixarei ali (aqui) para que algum poeta o colha mais tarde, em tempos necessários.

* * *

E quando, à hora de sair,
Eu já tiver cruzado novamente o portão do Jardim Botânico,
Saiba que estarei (estive) pensando em você,
Leitor do ano que vem.
Leitor que ainda pode nascer.

2 comentários:

Anônimo disse...

Parabéns, Tenório.
Maravilhoso poema!
Tentarei ser esse leitor do ano que vem e irei de encontro a esse poema enterrado... Quem sabe terei o prazer de (re)ler o original?
Abraço,

Rafa Maia

L. Rafael Nolli disse...

Tenório, meu camarada! Mantendo o alto nível! Gostei desse poema que se desenvolve em partes, ainda que as partes possuam vida própria e possam ser lidos e compreendidos separadamente. Essa indagação sobre o possível leitor, um leitor-futuro que surgirá a qualquer momento, é bem interessante! Outra coisa que gostaria de destacar é essa viagem paisagística, urbanística pela cidade, um roteiro poético que contempla os jardins e as ruas, os muros e os grafites! Gostei.