domingo, 24 de maio de 2009

Hiperbóreos


para Lucas de Oliveira
Quisera que além das fronteiras
houvesse um outro mundo,
encravado debaixo desse mesmo céu –

onde homens como eu,
retirados do mesmo fosso,
tivessem aquilo que nos falta.

Por detrás de suas portas
tudo não fosse previsível e amargo:
a lida não exigiria o coração dos filhos,
o prazer da mulher anulado até segunda ordem,
as horas fraternas adiadas
para outro data, em outro lugar.

O dia, para acontecer, não necessitaria
mastigar a ponta de seus dedos
– beber o suco de sua imaginação
– minar o combustível de seus sonhos.

O dia, para funcionar, não exigiria
uma nova geografia nos rostos
(uma imensa ferida aberta)
– o riso e o beijo aniquilados
– o nome perdido em meio aos escombros da face
resistindo mumificado na foto do crachá.

Quisera que dobrando a linha próxima
houvesse uma outra terra,
mera continuidade dessa que por ora piso –

onde a Lei não exigisse uma
travessia diária com o sol posto às costas
afim de aquecer a piscina e corar as senhoras
de boa educação.

A Ordem não obrigasse uma
rigidez marcial ao espetarem a lua no céu,
mantê-la acessa na janela dos nights clubs
para pratear os passos de dança no gran hall.

Onde um decreto não impusesse
a manutenção e a conservação das estrelas
para acalentar o sonho dos pequenos
e ilustrar o triunfo dos bons moços.

Quisera que debaixo de seus tetos
houvesse mais que um fiapo de descanso
velado por um cão
ou um outro alarme estúpido qualquer –

que vencendo o limite adiante
existisse uma outra região,
habitada por homens como eu,
organizados num mesmo caldeirão –

onde os filmes de Chaplin
não fossem meros passatempos cômicos

e Chapolin Colorado não estivesse
lutando contra um demônio fictício.

Não fosse necessário afiar os dentes, as unhas,
sair de casa com uma faca no bolso da calça –

sem um dicionário de ódio no criado mudo
seria possível despertar, ir ao supermercado.

Quisera que após o perímetro adiante
houvesse um outro mundo,
situado no fim da rua que por aqui passa –

habitado por homens como eu.





*

9 comentários:

Adriana Godoy disse...

Que belo tratado sobre a humanidade. Um poema que traz as cores da realidade embebido em poesia. Bravo!

Hercília Fernandes disse...

"Quisera poder voar
linhas brancas e límpidas.

A alma não-prisioneira,
habitavel-mente cândida
e ínfima.

Quisera...

simplesmente, não-ser!..."


RAFAEL,

seu belo texto me remeteu às lembranças desses versos.

Vivemos uma época de grande conhecimento, porém de crise de pensamento e perdas de valores essenciais à vida humana. É preciso refletir o lugar do humano em meio as transformações que assolam o mundo moderno. Tenho também me preocupado com essas coisas...

Excelente seu texto. Parabéns!
Comunica sem imposições, porém "abre caminhos" com notória sensibilidade e liberdade poética.

Forte abraço,
H.F.

Renata de Aragão Lopes disse...

Subscrevo os comentários acima!

"Quisera"...

Benny Franklin disse...

Cara, muito bom! Melhor a cada poema.
Benny

tenório disse...

Quase concordo com o Benny: cada poema seu é o melhor, cada poema seu é memorável. fico impressionado com a qualidade do seu talento. é muito bom poder contar com seus poemas, sempre significativos. Sou seu fã!

Beatriz disse...

Quisera que homens e mulheres situassem dicionários e realidade sem tanta frustração.

Anônimo disse...

É isso aí meu bom...

L. Rafael Nolli disse...

Agradeço a todos pelos comentários e pela visita! Valeu, amigos!

VERA PINHEIRO disse...

Já disse que sou fã dos teus versos. Continuo, cada vez mais.