quinta-feira, 12 de fevereiro de 2009

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Elvira

( À memória do poeta Benjamin Péret )

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Às peles de Elvira
não bastava o chenile
no colchão
----------------iam ao chão
tocavam as poltronas de napa
naqueles dias suados de calor
( e abraçavam as pernas tortas
da penteadeira art nouveau
como um tipo de ameba
a fagocitar
uma espiroqueta orgulhosa e vã )
ganhavam a cozinha
o espaço debaixo da pia
----------------do fogão
vazavam pelas ruas
, bem me lembro
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Entravam nas bocas de lobo
as dobras de Elvira
caiam nos arrabaldes
( não havia favelas então )
cobriam as colinas das fazendas
sufocando o gado
achatando o terreiro
dos porcos
os canaviais colinosos
amolgando planícies
engolindo varjões
, ah se me lembro
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As crianças temiam Elvira
quando os pais demandavam silêncio
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e, no entanto,
um eterno cheiro de bolo
exalava da casa do papão rosado
como o aroma do cafezinho sempre fresco
represado num bule de ágata
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Quando mocinha
Elvira já era
uma Vênus de massa
paleolítica, italianada
- vim a saber depois
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Já tinha a cabeça sumida nos bobes
feito uma batata
num panelão de brajolas
nas domingueiras paroquiais
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E ria, como ria...
Ria como se fosse morrer
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Ao partir
já com 80 e tantos
não houve caixão
pra tanto perímetro:
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improvisou-se um imenso sudário
com sacaria de estopa puída
doada pela beneficiadora de algodão
e todas as mulheres da cidade
ajudaram na confecção do manto
com cara esquisita
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No sétimo dia de costura após costura
- os dedais já gastos
o cadáver roxo
os olhos saltando, a língua pra fora -
os homens da corporação tentaram embrulhá-la
com solenidade não convincente
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mas nem o coração de Elvira
coube nas léguas de pano
pois era, de fato, uma santa
e tudo nela
coração
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Ninguém chorou por Elvira
e hoje as crianças têm vergões na bunda
de tanto fazer bagunça
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9 comentários:

Assis de Mello disse...

Pessoal, aqui está mais uma postagem- um poeminha da minha "linha irônica".
Agradeço a todos que têm comentado minhas postagens, tanto aqui no Poema Dia quanto no meu blog.
Tenho estado um tanto ausente da net- meu próprio blog meio que abandonado- e sequer venho conseguindo reciprocar o carinho dos comentários.
Minha cabeça gira como um desses juicers que anunciam na televisão. Tomo os remedinhos na hora certa, mas acho que sou um caso perdido.
Chico

Adriana Godoy disse...

Um poema narrativo que brinca com as formas avantajadas de uma mulher, inclusive na hora de seu enterro. Hiperbólico em todos os sentidos.

Anônimo disse...

Cara, não tenho maiores explicações, só dizer que achei simplesmente sensacional!

Parece poema definitivo da literatura brasileira. Coisa pra ficar por aí na atmosfera.

Percebeu que gostei mesmo!

Maria Cintia Thome Teixeira Pinto disse...

Excelente, hilário e e assim se diz do poeta entre o riso e o shoro ele está....

Beatriz disse...

Conheci uma Elvira ..mas ela se chamava Olympia. Sinhá Olçympia!
O poema é tudo que disseram.
corajosos versos.

Felipe Costa Marques disse...

"Belo canto sobre a mulher que talvez Benjamim não conheceu"

Bravo pela memória!

Feliz poema!

Adriana Riess Karnal disse...

Muito lindo...uma ELvira faz parte do imaginário, mesmo sendo de verdade.OS versos são delicados.

Barone disse...

Já tinha a cabeça sumida nos bobes
feito uma batata
num panelão de brajolas
nas domingueiras paroquiais

E ria, como ria...
Ria como se fosse morrer

Heyk disse...

Cara, parabéns, eu só me surpreendo com a casa.