segunda-feira, 29 de dezembro de 2008

Poema em linha reta - Fernando Pessoa

Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.

E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo,
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;
Eu, que tenho sido cômico às criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,
Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado
Para fora da possibilidade do soco;
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.

Toda a gente que eu conheço e que fala comigo
Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho,
Nunca foi senão príncipe - todos eles príncipes - na vida...

Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!
Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?Ó príncipes, meus irmãos,

Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?

Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra?

Poderão as mulheres não os terem amado,
Podem ter sido traídos - mas ridículos nunca!
E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,
Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?
Eu, que venho sido vil, literalmente vil,
Vil no sentido mesquinho e infame da vileza.

7 comentários:

Graça Pires disse...

É fantástico este poema de Pessoa com o qual todos, penso, nos identificamos. Parabéns pelo vosso projecto que está a correr muito bem. Sou visita assídua. Desejo a todos um Ano de 2009 maravilhoso.
Beijos

Beatriz disse...

Bela escolha, Barone.
Generosa acolhida para nós. para mim que sou aprendiz, então, caiu como luva de ternura.
adorei.
mille baci

Márcia Maia disse...

O grande Álvaro de Campos: ao meu sentir o melhor dos Pessoa.

Anônimo disse...

Grande postagem! Especial lembrança! Este meu conterrâneo (e por que não 'estes'... como lembrou a Márcia acima?), orgulho da nossa bela língua e poesia portuguesa é meu ídolo! Obrigado, caro Bardo Barone. Abraços e um FELIZ ANO TODO a todos!

L. Rafael Nolli disse...

Um dos poemas mais fascinantes que conheço!

Maria Cintia Thome Teixeira Pinto disse...

Fernando Pessoa, magnitude em saber lidar com a vida interior...
este em especial é o mais tocante pra mim de sua obra...
Bela escolha!


Belo ano pra vc.
Cintia Thome

Helena disse...

Este poema ficava na carteira do meu ex-marido quando nos encontramos no tempo do rascunho da Bíblia.

Tem um poder especial para mim, eu sei de cor. Mas meus preferidos são Tabacaria e Dobrada à moda do Porto

helena